terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Sabonete, raiva e água morna

De tempos a tempos, mulheres encontradas por acaso no canto de sofá de uma reunião de amigos, como quem descobre trocos inesperados no bolso do casaco de Inverno, sobem comigo no elevador para uma rápida imitação do deslumbramento e da ternura de que conheço já de cor os mínimos detalhes, desde o desenvolto uísque inicial ao primeiro soslaio de desejo suficientemente longo para não ser sincero, até o amor acabar no chapinar do bidé, onde as grandes efusões se desvanecem à custa de sabonete, raiva e água morna. Despedimo-nos no vestíbulo trocando números de telefone que imediatamente se esquecem e um beijo desiludido que a falta de baton torna incolor, e elas evaporam-se da minha vida abandonando no lençol a mancha de clara de ovo que constitiu como que o selo branco que certifica o amor acabado: apenas um perfume estranho, a vestir-me os sovacos de odores de cocote, e um traço de base no pescoço descoberto na manhã seguinte durante o hara-kiri sangrento da barba, me garantem a breve passagem real pela minha cama do que cuidava já serem os imprecisos artefactos que a melancolia inventa.
António Lobo Antunes;
"Os cus de Judas"

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Slow Show

Standing at the punch table swallowing punch
can’t pay attention to the sound of anyone
a little more stupid, a little more scared
every minute more unprepared

I made a mistake in my life today
everything I love gets lost in drawers
I want to start over, I want to be winning
way out of sync from the beginning

I wanna hurry home to you
put on a slow, dumb show for you
and crack you up
so you can put a blue ribbon on my brain
god I’m very, very frightening
I’ll overdo it

Looking for somewhere to stand and stay
I leaned on the wall and the wall leaned away
Can I get a minute of not being nervous
and not thinking of my dick
My leg is sparkles, my leg is pins
I better get my shit together, better gather my shit in
You could drive a car through my head in five minutes
from one side of it to the other

I wanna hurry home to you
put on a slow, dumb show for you
and crack you up
so you can put a blue ribbon on my brain
god I’m very, very frightening
I’ll overdo it

You know I dreamed about you
for twenty-nine years before I saw you
You know I dreamed about you
I missed you for
for twenty-nine years


The National in "Boxer"

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Voodoo Girl


Her skin is white cloth,
and she's all sewn apart
and she has many colored pins
sticking out of her heart.

She has a beautiful set
of hypno-disc eyes,
the ones that she uses
to hypnotize guys.

She has many different zombies
who are deeply in her trance.
She even has a zombie
who was originally from France.

But she knows she has a curse on her,
a curse she cannot win.
For if someone gets
too close to her,
the pins stick farther in.

"The melancholy death of Oyster Boy & other stories"
Tim Burton

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Canção Simples

Há qualquer coisa de leve na tua mão,
Qualquer coisa que aquece o coração.
Há qualquer coisa quente quando estás,
Qualquer coisa que prende e nos desfaz.


Fazes muito mais que o sol.
Fazes muito mais que o sol.

A forma dos teus braços sobre os meus,
O tempo dos meus olhos sobre os teus.
Desço nos teus ombros para provar
Tudo o que pediste para levar.

Fazes muito mais que o sol.
Fazes muito mais...


Tens os raios fortes a queimar
Todo o gelo frio que construí.
Entras no meu sangue devagar
E eu a transbordar dentro de ti.

Tens os raios brancos como um rio,
Sou quem sai do escuro para te ver,
Tens os raios puros no luar,
Sou quem grita fundo para te ter.

Fazes muito mais que o sol.
Fazes muito mais que o sol.
Fazes muito mais que o sol.
Fazes muito mais...

Quero ver as cores que tu vês
Para saber a dança que tu és.
Quero ser do vento que te faz.
Quero ser do espaço onde estás.


Deixa ser tão leve a tua mão,
Para ser tão simples a canção.
Deixa ser das flores o respirar
Para ser mais fácil te encontrar.


Fazes muito mais que o sol.
Fazes muito mais que o sol.
Fazes muito mais que o sol.
Fazes muito mais...

Vem quebrar o medo, vem.
Saber se há depois
E sentir que somos dois,
Mas que juntos somos mais.

Quero ser razão para seres maior.
Quero te oferecer o meu melhor.
Quero ser razão para seres maior.
Quero te oferecer o meu melhor.

Fazes muito mais que o sol.


Tiago Bettencourt e Mantha

quinta-feira, 1 de maio de 2008

A propósito das estrelas

Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas
Adília Lopes, in
"Desfogados pelo vento, A poesia dos anos 80, Agora",
Antologia de Valter Hugo Mãe, Ed. Quasi

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Morte - Uma peça

...
John: Trazei água.
Kleinman: De que me serve a água?
John: Pensei que tinhas sede.
Kleinman: Morrer não faz sede. A não ser que se seja apunhalado depois de se ter comido arenques.
John: Tens medo de morrer?
Kleinman: Não é que tenha medo de morrer, é que não quero estar aqui quando isso acontecer.
...

in Sem penas
de Woody Allen

terça-feira, 22 de abril de 2008

101 experiments in the philosophy of everyday life

1. Call yourself
2. Empty a word of its meaning
3. Look in vain for 'I'
4. Make the world last twenty minutes
5. See the stars below you
6. See a landscape as a stretched canvas
7. Lose something and not know what
8. Recall where you were this morning
9. Hurt yourself briefly
10. Feel eternal
11. Telephone at random
12. Rediscover your room after a journey
13. Drink while urinating
14. Make a wall between your hands
15. Walk in the dark
16. Dream of all the places in the world
17. Peel an apple in your head
18. Visualize a pile of human organs
19. Imagine yourself high up
20. Imagine your imminent death
21. Try to measure existence
22. Counting to a thousand
23. Dread the arrival of the bus
24. Run in a graveyard
25. Play the fool
26. Watch a woman at her window
27. Invent lives for yourself
28. Look at people from a moving car
29. Follow the movement of ants
30. Eat a nameless substance
31. Watch dust in the sun
32. Resist tiredness
33. Overeat
34. Play the animal
35. Contemplate a dead bird
36. Come across a childhood toy
37. Wait while doing nothing
38. Try not to think
39. Go to the hairdresser
40. Shower with your eyes closed
41. Sleep on your front in the sun
42. Go to the circus
43. Try on clothes
44. Calligraphize
45. Light a fire in the hearth
46. Be aware of yourself speaking
47. Weep at the cinema
48. Meet up with friends after several years
49. Browse at the bookseller's
50. Become music
51. Pull out a hair
52. Walk in an imaginary forest
53. Demonstrate on your own
54. Stay in the hammock
55. Invent headlines
56. Listen to short-wave radio
57. Turn off the sound on the TV
58. Rediscover a childhood scene that seemed larger
59. Get used to eating something you don't like
60. Fast for a while
61. Rant for ten minutes
62. Drive through a forest
63. Give without thinking about it
64. Look for a blue food
65. Become a saint or sinner
66. Recover lost memories
67. Watch someone sleeping
68. Work on a holiday
69. Consider humanity to be an error
70. Inhabit the planet of small gestures
71. Disconnect the phone
72. Smile at a stranger
73. Enter the space of a painting
74. Leave the cinema in daytime
75. Plunge into cold water
76. Seek out immutable landscapes
77. Listen to a recording of your voice
78. Tell a stranger she is beautifull
79. Believe in the existence of a smell
80. Wake up without knowing where
81. Descend an interminable staircase
82. Swallow your emotion
83. Fix the ephemeral
84. Decorate a room
85. Laugh at an idea
86. Vanish at a pavement café
87. Row on a lake
88. Prowl at night
89. Become attached to an object
90. Sing the praises of Father Christmas
91. Play with a child
92. Encounter pure chance
93. Recite the telephone directory on your knees
94. Think about what other people are doing
95. Practise make-believe everywhere
96. Kill people in your head
97. Take the tube without going anywhere
98. Remove your watch
99. Put up with a chatterbox
100. Clear up after the party
101. Find the infinitesimal caress

"101 experiments in the philosophy of everyday life",
by Roger Pol-Droit

sábado, 12 de abril de 2008

Lady Bird - Nancy Sinatra

Nancy:
I've been where the eagle flies
Rode his wings 'cross autumn skies
Kissed the sun, touched the moon
But he left me much too soon
His lady bird...
he left his lady bird

Lee:
Lady bird come on down
I'm here waiting on the ground
Lady bird I'll treat you good
Ah, lady bird I wish you would
You lady bird...pretty lady bird

Nancy:
Lightning flashed across the sky
The night he taught me how to fly
The sun came up and then I found
Too soon he let his lady down
His lady bird...I'm his lady bird

Lee:
Lady bird come on down
I'm here waiting on the ground
Lady bird I'll treat you good
Aw, lady bird I wish you would
You lady bird...pretty lady bird

Nancy:
Winter lives in my heart
In the times that we're apart
Summer sings a song or two
When he says 'I love you true'
My lady bird...yeah,
I'm his lady bird

Lee:
Lady bird come on down
I'm here waiting on the ground
Lady bird I'll treat you good
Aw, lady bird I wish you would
You lady bird...pretty lady bird

Nancy:
I'm your lady bird

Lee:
You're a lady bird

Nancy:
Yes, I'm a lady bird

Lee:
You're too much you little bird

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Sílvia

Vai me usar
E jogar fora
Ou pode ficar
E até gostar do meu número
Me apertar
Como uma uva
Me desfrutar
Na sua boca uma música
Na dúvida
Tanto faz
Jaz
Morre de amor quem é capaz
Sílvia
Jaz
Morro de amor e quero mais
Sílvia
Me alugar
E dormir fora
Me extraviar
Me ver no meio do público
Me acenar
Como uma luva vai combinar
Na minha mão uma música
Na dúvida
Tanto faz
Jaz
Morre de amor quem é capaz
Sílvia
Jaz
Morre de amor quem é capaz
Sílvia
Jaz
Morro de amor e quero mais
Sílvia

Chico Buarque

sábado, 29 de março de 2008

A bela acordada (ou a azeitona da concórdia)

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia era bonita, as pessoas diziam-lhe:
- Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
- Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.
A mulher pediu a Deus:
- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias.
Só os animais gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço.
No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.
Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe. Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.
- Será uma sereia ? – perguntaram em coro as criadas ao rei.
- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito tortas, uma mais curta do que a outra – respondeu o rei às criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar. Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas se foram embora:
- Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça.
A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:
- Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona.
E casaram-se logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.
Adília Lopes

terça-feira, 25 de março de 2008

Os jardins de Eva

Estou sentada na eira. Estou no centro do mundo. Aprendo a imobilidade. Se fecho os olhos esvoaçam morcegos no interior das pálpebras.

Y. K. Centeno

domingo, 23 de março de 2008

É quando estás de joelhos...

É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada de trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos me entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra.
David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 20 de março de 2008

A pequena roubou isto para ti

Amo devagar os amigos que são tristes
com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados,
fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo,
e eles voltam-se profundamente dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Herberto Hélder

Cristininha

Minha querida Cristininha
há horas difíceis
como dizem os cauteleiros
ou os Tampax


Adília Lopes in Caras Baratas

The ice man

My heart is just about gone now. The warmth I used to have has retreated somewhere far away. Sometimes I even forget that warmth ever existed. I'm still able to cry, though. I'm completely alone, in the coldest, loneniest place in the world. When I cry, my husband kisses my cheecks, turning my tears to ice. He peels off those frozen tears and puts them on his tongue. You know I love you, he says. And I know it's true. The Ice Man does love me. But the wind blows his frozen words further and further into the past. And I cry some more, icy tears welling up ceaselessly in our frozen little home in the far off South Pole.

Haruki Murakami in Blind Willow,
Sleeping Woman