sábado, 29 de março de 2008

A bela acordada (ou a azeitona da concórdia)

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia era bonita, as pessoas diziam-lhe:
- Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
- Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.
A mulher pediu a Deus:
- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias.
Só os animais gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço.
No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.
Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe. Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.
- Será uma sereia ? – perguntaram em coro as criadas ao rei.
- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito tortas, uma mais curta do que a outra – respondeu o rei às criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar. Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas se foram embora:
- Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça.
A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:
- Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona.
E casaram-se logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.
Adília Lopes

terça-feira, 25 de março de 2008

Os jardins de Eva

Estou sentada na eira. Estou no centro do mundo. Aprendo a imobilidade. Se fecho os olhos esvoaçam morcegos no interior das pálpebras.

Y. K. Centeno

domingo, 23 de março de 2008

É quando estás de joelhos...

É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada de trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos me entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra.
David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 20 de março de 2008

A pequena roubou isto para ti

Amo devagar os amigos que são tristes
com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados,
fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo,
e eles voltam-se profundamente dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Herberto Hélder

Cristininha

Minha querida Cristininha
há horas difíceis
como dizem os cauteleiros
ou os Tampax


Adília Lopes in Caras Baratas

The ice man

My heart is just about gone now. The warmth I used to have has retreated somewhere far away. Sometimes I even forget that warmth ever existed. I'm still able to cry, though. I'm completely alone, in the coldest, loneniest place in the world. When I cry, my husband kisses my cheecks, turning my tears to ice. He peels off those frozen tears and puts them on his tongue. You know I love you, he says. And I know it's true. The Ice Man does love me. But the wind blows his frozen words further and further into the past. And I cry some more, icy tears welling up ceaselessly in our frozen little home in the far off South Pole.

Haruki Murakami in Blind Willow,
Sleeping Woman